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Luísa Saraiva

Bocarra

Luísa Saraiva - Dinis Santos
© Dinis Santos
Luísa Saraiva - Dinis Santos
© Dinis Santos
Luísa Saraiva - Dinis Santos
© Dinis Santos
  • 20.11 — 21.11 2025
  • Espetáculos / Performances
  • Centro Cultural de Belém - Black Box
  • M/12
  • 1H
  • Em português e espanhol

Voz, gesto e som ressoam no espaço e nos corpos como matéria viva de resistência.

Bocarra — palavra que designa uma boca muito aberta ou desmesurada — parte do repertório de canto polifónico feminino do norte de Portugal e da Galiza, onde se cantam sentimentos de amargura e se evocam violências brutais contra mulheres. Essas vozes — gritadas ou murmuradas, ritualizadas ou fragmentadas — emergem como gestos de não-conformidade e resistência.

Em cena, três intérpretes cantam, movem-se e relacionam-se com um conjunto de objetos sonoros originais. Feitos de pedra, cerâmica, plástico ou metal, estes instrumentos artesanais funcionam como extensões dos órgãos internos e da respiração, ativados por sopros, fricções e toques que amplificam o corpo.

Como num concerto, onde cada canção se impõe como protagonista, Bocarra constrói uma coreografia vocal e sensível, em que os corpos, transformados em instrumentos, produzem imagens e assombrações melódicas — gritos que ressoam como formas de resistência.

Luísa Saraiva em conversa com David Cabecinha

A tua prática tem andado muito em torno de uma investigação do corpo como espaço de ressonância e como instrumento. Um corpo que tem voz, que respira e que se relaciona com outros objetos musicais. Qual é a importância da música na tua relação com o corpo, com a dança?

Uma coisa que ficou clara para mim à medida que fui criando é a ideia da voz como algo que precisa de movimento para ter um afeto. Tenho um interesse muito específico na produção da música que me faz mover. Não tanto uma coisa que vem de fora e que é exterior a mim, mas uma coisa que tem que acontecer ao mesmo tempo, para poderem criar um sentido em conjunto. Não é sobre a música que se dança, mas sobre a música do corpo e a música das vísceras e a música dos órgãos. É sobre a música que te toca, e porquê.

Como é que aconteceu o encontro com estes repertórios de músicas tradicionais? Como vês o teu lugar de trabalho a partir deste universo?

Comecei a pesquisar a música tradicional portuguesa precisamente por esse interesse em perceber que som é que certos corpos produzem. Porque é que a minha voz se encaixa aqui? Porque é que para mim é intuitivo as cadências, acordes e progressões que acontecem nestas canções? Eu nunca vivi numa aldeia, eu não aprendi nenhum deste repertório a trabalhar, mas a minha a minha voz tem o timbre, a cor, e as qualidades necessárias para poder não só aprender, como investigar e alterar.

Também há uma dimensão pessoal. Quando ficamos mais velhos começamos a pensar não só no sítio de onde somos, mas nos sítios de onde vêm os nossos pais. Comecei a perceber que o movimento que o meu pai fez, de uma aldeia na Serra da Estrela para uma cidade ao longo do século 20, terá sido mais profundo e transformador culturalmente do que o meu movimento do Porto para Berlim em 2011.

Foi também um exercício especulativo sobre esses fantasmas que são tão recentes, que desapareceram tão rápido, numa geração. O que aconteceria se eles não tivessem desaparecido? Se calhar esse pode ser o papel da artista contemporânea. Há outro tipo de trabalho do corpo possível, que é o trabalho de dança, e é o trabalho afetivo que eu posso explorar. É sobre quem são estas pessoas que viveram antes de mim que ocuparam este lugar, e quem seria eu se não tivesse havido mudanças culturais profundas. Não é tanto o que é que isto significa em termos de tradição, mas mais em termos da energia e da bagagem musical e corporal que nós carregamos.

Acho curioso pensar sobre esta possibilidade de incorporação de uma coisa que não é da nossa contemporaneidade, mas com a qual podemos aprender coisas hoje e que se pode transformar e alterar e rever com ferramentas contemporâneas.

Ou até para aceder. No Bocarra, quando eu estou a cantar a Dona Irene ou a Henriqueta, são histórias profundamente violentas, em que há uma violação, em que há frases muito claras de culpa. Sabemos que embora hoje tenha outros recortes, estas coisas não desapareceram. Há algo muito tocante de cantar esses repertórios e também questionar por que é que ainda me toca. Que experiências é que estão subjacentes, que ideias de corpo e de poder estão subjacentes.

Independentemente do tema da canção em si, acho que é mais interessante essa questão da transmissão. Não me interessa tanto que a canção seja sobre uma quebra de uma promessa de um casamento, por exemplo, mas há algo sobre o afeto da quebra de uma promessa, de sentir-se excluído, não escolhido, que passou muitos séculos. Que contextos levam a que se cantasse isto desta forma? Porque é que isto sobreviveu? Dá muitas perguntas que permitem que se faça um exercício de especulação.

Nestas canções deste cancioneiro há uma questão de género, não só pelo nome que dá o mote para as histórias que estão a ser contadas, destas mulheres, mas também pelo facto de ser um cancioneiro que era cantado por mulheres. E no entanto, nesta peça, decidiste não trabalhar exclusivamente com mulheres. Em cena, além de ti está a Luisa Alfonso e o Alexandre Achour, porquê?

Foi sim uma decisão muito deliberada, de não deixar que esta pesquisa, que esta incorporação fosse exclusivamente de ou por um grupo de mulheres. Porque não é só sobre a questão da voz feminina. Não queria que se tornasse só uma especulação fechada nesta tradição oral em que só havia género binário. Nós sabemos perfeitamente que estas questões não são questões exclusivas de mulheres, são daqueles que têm menos poder.

A peça em si é mais sobre esse afeto da violência, da perspetiva de quem sofre, da perspetiva da personagem que não tem voz. Já que todas as canções são sobre mulheres, para mim foi importante não fechar nessa lógica identitária. Estas mulheres que não falam somos nós os três.

Esta peça estreou num auditório grande e agora vai ser apresentada na Black Box do CCB. O que é que achas que esta proximidade vai alterar na relação com o público?

Quando estás muito longe não és tocado diretamente pela vibração da voz. Sinto que o afeto e a emoção de como cantar e como mover, que para mim está no cerne das minhas criações, vai estar mais presente – esse lado mais humano, de poder estar com as pessoas que estão a fazer a peça, no mesmo espaço, ser tocado diretamente pelas vozes, e poder perceber o que acontece ao corpo.

Lisboa, Berlim
Setembro 2025

Ficha Artística

Coreografia e direção artística Luísa Saraiva Criação e interpretação Luisa Alfonso, Alexandre Achour, Luísa Saraiva Instrumentos Inês Tartaruga Água Desenho de som Francisco Antão Desenho de luz Cárin Geada Figurinos Isabelle Lange Treino de autodefesa Zeina Hanna, Manuel Pérez Bouza Treino vocal Fabíola Augusta Olhar externo Niklaus Bein Agradecimentos Matthias Mohr, Arnaldo Saraiva Produção Associação Calote Esférica e Crybaby GbR Produção executiva Övgü Özen, Nadine Freisleben /Apricot Productions (Alemanha), Mariana Costa / Associação Calote Esférica (Portugal) Coprodução Festival Dias da Dança /Teatro Municipal do Porto, La Manufacture CDCN Nouvelle- Aquitaine, PACT Zollverein Financiamento República Portuguesa – Cultura/Direção -Geral das Artes, Ministério da Cultura e Ciência Nordrhein -Westfalen/NRW Landesbüro Freie Darstellende Künste, Kunststiftung NRW Apoio Residências Paraíso, Colectivo RPM

Adiciona ao calendário

20 nov 20H00

21 nov 21H30

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Luísa Saraiva

Luísa Saraiva é coreógrafa e intérprete, nascida no Porto, Portugal, e vive entre o Porto e Berlim. Estudou Psicologia na Universidade do Porto e Dança na Folkwang Universität der Künste, em Essen. O seu trabalho coreográfico explora a linguagem do corpo e da voz, situando-se na intersecção entre o movimento e a composição musical. Foi selecionada para a bolsa danceWeb em 2019 e, na temporada de 2019/2020, foi uma das coreógrafas em residência no K3 | Tanzplan Hamburg. Em 2022/2023, foi bolseira do programa Tanzpraxis da Cidade de Berlim. Nos últimos...

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